quarta-feira, 31 de julho de 2024

CONTO: DE DENTRO DA TERRA


DE DENTRO DA TERRA


            O lugar todo estava em ruínas e tudo por ali cheirava como um poço de lodo, com certeza há muito tempo ninguém cruzava aquele gramado alto, tomado por ervas daninhas e empoçado de lama, para chegar até a estufada porta de madeira da entrada. Os vizinhos afirmavam que nunca viram alguém entrando, mas era comum avistar pessoas saindo, eles deviam saber o que estavam dizendo, com certeza vigiavam o casebre dia e noite, assim como vigiavam a vida uns dos outros.

            Primeiro ouvi as histórias, relatos até então tidos como exagerados e fantasiosos, mas todas as histórias tinham um ponto em comum: Ninguém entrava, mas pessoas saíam. Pelo que contavam, havia época de maior e época de menor movimento, mas recentemente não havia movimento algum, apenas podia-se ouvir em estranhas horas da madrugada barulhos de líquidos como se despejados de uma grande altura e um dos vizinhos alegava que em alguns destes momentos era possível observar, através das frestas das janelas de madeira apodrecida, o movimento de uma luz fraca perambulando lá dentro.

            Ninguém sabia identificar o dono do casebre e nem puderam entrar em um consenso sobre quando aquela estranha atividade teve início, quanto às pessoas que saíam todos eles afirmavam convictos que eram todos altos, pálidos, cambaleantes e maltrapilhos, a maioria deles seminu. Por mais fantasiosa e espalhafatosa que a história parecia ser naquele momento, seria necessário verificar, a expansão da cidade estava espremendo os tipos mais estranhos para os bairros mais silenciosos causando problemas e situações que pessoas como aquelas da vizinhança não estavam acostumadas a lidar.

Então, sob o olhar dos curiosos segui até a casa, venci o gramado alto pisando em várias poças de lama até atingir a porta. Bati e aguardei alguns segundos, como já esperava, não obtive resposta. Passei a sondar as janelas, mas mesmo com frestas e falhas causadas pelo apodrecimento das madeiras a escuridão do interior impedia divisar qualquer coisa. Dei a volta pelo terreno lamacento onde a pequena propriedade abandonada estava praticamente afundando, minha intenção era buscar por uma porta nos fundos, como era comum naquele tipo de construção, encontrei, mas ela estava bloqueada por fora por madeiras pregadas toscamente, montes de terra e detritos de pedra e madeira carcomida pela podridão.


Voltando para a entrada, encostei o ouvido na porta e esperei alguns instantes, nada, segurei a maçaneta da porta e girando-a lentamente abri uma pequena fresta, estranhei que estivesse tão fácil de abri-la e nenhum daqueles queixosos curiosos tivesse pensado em forçá-la, um fedor intenso de bolor soprou lá de dentro em uma lufada de ar quente e úmido me forçando a fechar novamente a porta. Não precisei me virar para perceber todos os olhos da vizinhança sobre mim.

            Após todos os devidos protestos dos observadores prometi-lhes que faria sim uma incursão, mas não exatamente naquele momento, ainda era dia claro e a condição de detetive particular não me dava privilégios de desobedecer a certas, digamos, convenções, ao menos não pelas horas claras do dia. Expliquei-lhes meu plano: Eu faria uma vigília naquela noite, passaria a noite pelos arredores observando local e se a oportunidade certa surgisse claro que eu entraria na casa. Percebi que a curiosidade deles em saber o que havia e acontecia lá dentro era muito maior que a preocupação com a segurança de suas casas.

Eu estava recentemente estabelecido na vizinhança, havia me afastado da polícia e adquirido uma casa de bairro, uma casa pequena e muito bem conservada, o que não era incomum naquela parte da cidade, até então mirando uma rotina mais pacata e solitária, não imaginava que algumas poucas horas de conversas com os vizinhos me colocaria naquela situação.

Retornei para minha casa algumas ruas ao oeste dali, preparei minhas coisas (Basicamente uma lanterna, pilhas extras e minha arma). Tirei um cochilo inquieto, fiz um lanche e esperei pelo final da tarde. Iniciei meu trabalho às 18h, saindo de casa com uma estranha inquietação, talvez a expectativa, talvez a ansiedade de estar de alguma forma voltando à ativa... Tentei não dar muita atenção.

Dei algumas voltas pelas ruas próximas tentando despistar os vizinhos, era possível vê-los nas janelas e varandas e impossível de evitar que acenassem para mim, me conformei, sabia que não passaria despercebido por eles. Rodei pela vizinhança por algum tempo e quando a noite realmente começou a tomar forma os vizinhos haviam resolvido cuidar de suas vidas e afazeres e me deixaram em paz para estabelecer alguns bons locais para observação.

Fiquei debaixo das árvores que ladeavam a parte leste da casa velha e aparentemente vazia. Depois de algum tempo, andando a pé circulei algumas vezes o casebre e tudo ali estava quieto, mas sabia que eu não estava sozinho, com certeza algum vizinho (ou todos eles) estava observando por entre as cortinas. Na terceira ronda resolvi voltar para as árvores, fiquei lá por algumas horas até que resolvi mudar de posição para ter um melhor ângulo para a observação, no novo posto estabelecido eu podia ter visão da porta de frente, da lateral e de parte dos fundos do terreno. Sabia que não iria conseguir mesmo passar despercebido pela vizinhança, mas pretendia pelo menos poder passar despercebido por alguém que talvez fosse até a casa.

Oculto pela escuridão projetada por uma grande árvore que bloqueava boa parte da luz dos postes de iluminação, eu fiquei por um bom tempo prestando atenção na pouca movimentação da rua, nada de anormal, pessoas saindo nas varandas para fumar e outras chegando do trabalho. Por volta das 22h a monotonia da espreita, que começava a parecer sem propósito, estava quase me vencendo e eu começava a pensar que havia me precipitado, deveria ter convencido os vizinhos que era melhor iniciar uma pesquisa sobre a casa e o terreno com alguns corretores de imóveis, mas enfim...

A noite fria começava a tornar-se madrugada gelada, eu estava com muito sono e pouco havia me movimentado pelos arredores do terreno lamacento, nada havia acontecido e todas as casas estavam escuras e silenciosas, resolvi que iria embora. Passei vagarosamente observando as janelas, quase distraído pelo sono e pelo frio, quando vi rapidamente entre as frestas das madeiras da janela uma luz como a de uma vela, seria imperceptível se eu estivesse um pouco mais rápido. Caminhei com cautela procurando não fazer barulho, cruzei mais uma vez o gramado alto até chegar à janela, mas já não havia mais luz alguma, lá dentro estava novamente escuro demais para que pudesse distinguir qualquer coisa.

Dei mais uma volta ao redor da casa e me dirigi para a porta, olhei em direção às casas vizinhas que estavam totalmente fechadas e escuras, encostei levemente na porta e puxei com cuidado abrindo uma boa fresta fazendo um monótono rangido, peguei a arma e a lanterna, apontei o facho de luz para dentro tentando perceber algum movimento, mas tudo estava quieto, puxei um pouco mais a porta e entrei, o cheiro do mofo era sufocante, toda a casa era úmida e o chão escorregadio de lodo.

Um som de gotejar era constante dentro da casa, joguei a luz da lanterna por diversos cantos do local e percebi que não havia ali muitos lugares para alguém se esconder, a casa por dentro havia sofrido grosseiras modificações e parecia mais uma espécie de galpão. Era claro que não havia mais ninguém ali além de mim, o que me deixava ainda mais intrigado com a luz que havia percebido poucos minutos atrás. Comecei a caminhar lentamente sobre o chão escorregadio e conforme ia avançando para o centro da construção o som do gotejar ficava mais nítido, lancei a luz da lanterna para baixo e com um susto percebi que eu estava a um passo de despencar em um enorme buraco escavado bem ali no centro do lugar. Lentamente, com medo de escorregar, me abaixei junto à borda do poço que parecia muito profundo. Apontei a lanterna para o dentro do buraco, um cheiro terrível subia até mim em uma mistura de umidade, água parada e matéria em decomposição me obrigando a cobrir o nariz colocando a pistola novamente presa na cintura, eu não podia enxergar o fundo do poço, mas percebi que na extremidade oposta a que eu estava havia uma longa escada de madeira, que pela aparência era tão velha quanto tudo por ali.

Naquele momento pensei que havia desvendado o mistério, tudo estava claro, com certeza aquele buraco fazia parte de algum plano de ladrões, embora ainda não pudesse explicar como alguém poderia remover tanta terra sem chamar a atenção dos vizinhos para a operação de escavação. Lembrei-me dos montes de terra nos fundos do terreno mesmo que aqueles claramente não fizessem jus à profundidade daquele verdadeiro abismo.

Fiz o contorno ladeando o buraco até próximo da escada enquanto decidia quem eu deveria notificar primeiro e naquele momento ouvi um ranger de madeira que vinha das profundezas escuras daquele maldito buraco, alguém estava subindo pela apodrecida escada. Apaguei a lanterna me afastando para um canto enquanto o ruído aumentava aproximando-se da superfície, não podia acreditar que alguém estivesse subindo por aquela escada tão rapidamente como parecia estar.

No canto onde eu tentava me esconder na escuridão havia uma pilha considerável de tecidos que tateando percebi serem grandes casacos, com certeza a atividade ali não estava abandonada. No mesmo momento em que encontrei os casacos uma mão anormalmente grande e inchada tateou a borda do poço.

            O que saiu de lá não era humano, apesar da escuridão eu podia ver a pele inchada, rugosa e incrivelmente pálida da criatura, tapei a boca com as mãos para conter um grito de espanto quando a coisa pôs-se totalmente para fora do buraco. Minha mão trêmula procurou pela minha arma que acabou caindo fazendo estardalhaço naquele ambiente silencioso, o monstro rapidamente olhou para a pilha de casacos dentre os quais eu tentava me esconder, enfiei-me de vez por debaixo da pilha malcheirosa de capotes velhos e embolorados. A criatura avançava enquanto em desespero eu tateava o chão em busca da pistola, mas de súbito a criatura do subterrâneo parou e virou-se novamente para a cratera, o ranger da escada recomeçara.

A criatura debruçou-se na borda e ajudou outro semelhante a terminar de su1bir, este também estava completamente nu, mas as proporções de seu corpo eram visivelmente menores. A segunda criatura estava completamente atordoada, cambaleava para os lados e emitia grunhidos guturais que enchiam minha alma de pavor, o maior então emitiu vociferou de uma maneira medonha e naquele momento eu quase perdi a consciência, um medo terrível me invadiu e eu tremia enquanto o suor gelado brotava e escorria pela minha testa.

Pensamentos desconexos e aterradores passavam como ondas gigantes por minha cabeça, não queria observar aquelas criaturas, mas cada vez mais me sentia compelido a olhá-las. O monstro maior então começou a falar em uma língua grotesca com a outra, eu não podia entender nada, mas a cada vociferação eu sentia meus ossos tremerem dentro da carne enquanto as lágrimas rolavam pelo meu rosto. O monstro maior deu alguns passos até a pilha de casacos onde, como um rato eu me escondia, e apanhando um deles imediatamente o jogou sobre os ombros do outro que parecia estar recuperando o equilíbrio. Vociferou mais algumas coisas indecifráveis e começou a empurrar violentamente o menor em direção à porta o enxotando dali.

            Eu segurava a boca com as mãos para não gritar, aquelas coisas saíam das profundezas da terra e caminhavam entre nós na superfície! O monstro voltou para o buraco e desapareceu, mas isto não diminuiu meu sentimento de pavor. Precisei de ainda de alguns minutos para reunir minhas forças e me levantar, saí da casa me arrastando, naquele momento eu era mais um verme do que um homem e quando cruzei a porta senti como se parte de um peso enorme estivesse sido retirado de cima de mim. E antes que eu abandonasse de vez o lugar, dei uma última olhada para trás, não vi nenhum dos monstros, mas me pareceu que próximo à entrada da casa havia uma pessoa escondida nas sombras. Gritei algumas palavras ininteligíveis e saí sem direção, pensava em chegar até minha casa e trancar-me até o fim dos meus dias, minha visão começou a ficar turva, tentei correr e não devo ter dado mais que alguns passos antes de cair desacordado.

            Na manhã seguinte fui encontrado pelos vizinhos, eu havia desmaiado no terreno lamacento durante a pífia tentativa de fuga. Alvoroçados, os moradores dali praticamente exigiam saber o que havia acontecido comigo ao mesmo tempo em que praguejavam contra viciados e ladrões que, na ideia deles, com certeza haviam me surpreendido. Finalmente me levaram para minha casa, onde eu ainda atordoado, contei-lhes uma história sobre uma pequena gangue de viciados ladrões que estavam tentando fazer dali um esconderijo, aproveite-me da história deles e eles deram-se por satisfeitos.

            Semanas depois houve um incidente no local da velha casa, o terreno cedeu e a construção ruiu para dentro de uma cratera profunda levando consigo grande parte do gramado lamacento, algumas árvores e toda a parte dos fundos que estava tomada por montes de terra e detritos. Os bombeiros afirmaram que o incidente foi devido a um colapso nos antigos sistemas de água e esgoto que certamente havia ali por debaixo e já há muito tempo desativados e esquecidos. Os vizinhos acreditaram assim como a polícia acreditou na história sobre a gangue de viciados que foi afugentada por um solitário ex-policial... Já eu, amargamente acreditava apenas no que meus olhos viram e no terror que minha mente vivenciou diante daqueles monstros.

            Durante as noites, principalmente nas mais úmidas, sou tomado por um temor quase insano, não consigo mais trabalhar e saio de casa somente para o estritamente necessário, nunca mais passei por aquela rua e aos poucos os vizinhos foram me esquecendo. Passo a maior parte do tempo conjecturando sozinho sobre a natureza daquelas coisas, sobre quantas delas podem existir e, principalmente, sobre quais seriam seus planos. Tenho certeza que aquele não era o único poço infernal existente!

Nunca mais serei o mesmo, nunca mais verei as coisas como antes. Passei a sentir que a todo o momento aquela figura que estava escondida nas sombras me observando enquanto eu tentava fugir daquele inferno, ainda permanecia por perto me vigiando e tomando conta até mesmo dos meus pensamentos. Com terror absoluto penso e tenho pesadelos com naquelas coisas, com aqueles monstros saindo de dentro terra e que agora podem estar em qualquer lugar...




Autor: Vagner Tadeu Firmino

A Triste Figura

Publicado em: Moderno Bestiário Urbano

Texto e imagem: Todos os direitos reservados

 Contato: atristefigura@gmail.com


Obrigado pela sua leitura, espero que tenha gostado.

2 comentários:

  1. Em tudo, a tensao e o medo que o autor consegue refletir do personagem para nos leitores, é de tal profundidade que chego a respirar como se estivesse em um lugar sombrio e totalmente gelado. Adans Medeiros

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    1. Meu amigo, muito obrigado pela leitura e pelo comentário! É muito animador saber que você gostou e se envolveu com a história, muito obrigado.

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