DE DENTRO DA TERRA
O
lugar todo estava em ruínas e tudo por ali cheirava como um poço de lodo, com
certeza há muito tempo ninguém cruzava aquele gramado alto, tomado por ervas
daninhas e empoçado de lama, para chegar até a estufada porta de madeira da entrada.
Os vizinhos afirmavam que nunca viram alguém entrando, mas era comum avistar
pessoas saindo, eles deviam saber o que estavam dizendo, com certeza vigiavam o
casebre dia e noite, assim como vigiavam a vida uns dos outros.
Primeiro
ouvi as histórias, relatos até então tidos como exagerados e fantasiosos, mas
todas as histórias tinham um ponto em comum: Ninguém entrava, mas pessoas saíam.
Pelo que contavam, havia época de maior e época de menor movimento, mas recentemente
não havia movimento algum, apenas podia-se ouvir em estranhas horas da
madrugada barulhos de líquidos como se despejados de uma grande altura e um dos
vizinhos alegava que em alguns destes momentos era possível observar, através
das frestas das janelas de madeira apodrecida, o movimento de uma luz fraca perambulando
lá dentro.
Ninguém
sabia identificar o dono do casebre e nem puderam entrar em um consenso sobre quando
aquela estranha atividade teve início, quanto às pessoas que saíam todos eles afirmavam
convictos que eram todos altos, pálidos, cambaleantes e maltrapilhos, a maioria
deles seminu. Por mais fantasiosa e espalhafatosa que a história parecia ser
naquele momento, seria necessário verificar, a expansão da cidade estava
espremendo os tipos mais estranhos para os bairros mais silenciosos causando
problemas e situações que pessoas como aquelas da vizinhança não estavam
acostumadas a lidar.
Então, sob o olhar dos
curiosos segui até a casa, venci o gramado alto pisando em várias poças de lama
até atingir a porta. Bati e aguardei alguns segundos, como já esperava, não
obtive resposta. Passei a sondar as janelas, mas mesmo com frestas e falhas
causadas pelo apodrecimento das madeiras a escuridão do interior impedia
divisar qualquer coisa. Dei a volta pelo terreno lamacento onde a pequena
propriedade abandonada estava praticamente afundando, minha intenção era buscar
por uma porta nos fundos, como era comum naquele tipo de construção, encontrei,
mas ela estava bloqueada por fora por madeiras pregadas toscamente, montes de
terra e detritos de pedra e madeira carcomida pela podridão.
Voltando para a
entrada, encostei o ouvido na porta e esperei alguns instantes, nada, segurei a
maçaneta da porta e girando-a lentamente abri uma pequena fresta, estranhei que
estivesse tão fácil de abri-la e nenhum daqueles queixosos curiosos tivesse
pensado em forçá-la, um fedor intenso de bolor soprou lá de dentro em uma
lufada de ar quente e úmido me forçando a fechar novamente a porta. Não
precisei me virar para perceber todos os olhos da vizinhança sobre mim.
Após
todos os devidos protestos dos observadores prometi-lhes que faria sim uma
incursão, mas não exatamente naquele momento, ainda era dia claro e a condição
de detetive particular não me dava privilégios de desobedecer a certas,
digamos, convenções, ao menos não pelas horas claras do dia. Expliquei-lhes meu
plano: Eu faria uma vigília naquela noite, passaria a noite pelos arredores
observando local e se a oportunidade certa surgisse claro que eu entraria na
casa. Percebi que a curiosidade deles em saber o que havia e acontecia lá
dentro era muito maior que a preocupação com a segurança de suas casas.
Eu estava recentemente
estabelecido na vizinhança, havia me afastado da polícia e adquirido uma casa
de bairro, uma casa pequena e muito bem conservada, o que não era incomum
naquela parte da cidade, até então mirando uma rotina mais pacata e solitária,
não imaginava que algumas poucas horas de conversas com os vizinhos me
colocaria naquela situação.
Retornei para minha
casa algumas ruas ao oeste dali, preparei minhas coisas (Basicamente uma
lanterna, pilhas extras e minha arma). Tirei um cochilo inquieto, fiz um lanche
e esperei pelo final da tarde. Iniciei meu trabalho às 18h, saindo de casa com
uma estranha inquietação, talvez a expectativa, talvez a ansiedade de estar de
alguma forma voltando à ativa... Tentei não dar muita atenção.
Dei algumas voltas
pelas ruas próximas tentando despistar os vizinhos, era possível vê-los nas
janelas e varandas e impossível de evitar que acenassem para mim, me conformei,
sabia que não passaria despercebido por eles. Rodei pela vizinhança por algum tempo
e quando a noite realmente começou a tomar forma os vizinhos haviam resolvido
cuidar de suas vidas e afazeres e me deixaram em paz para estabelecer alguns
bons locais para observação.
Fiquei debaixo das
árvores que ladeavam a parte leste da casa velha e aparentemente vazia. Depois
de algum tempo, andando a pé circulei algumas vezes o casebre e tudo ali estava
quieto, mas sabia que eu não estava sozinho, com certeza algum vizinho (ou
todos eles) estava observando por entre as cortinas. Na terceira ronda resolvi
voltar para as árvores, fiquei lá por algumas horas até que resolvi mudar de
posição para ter um melhor ângulo para a observação, no novo posto estabelecido
eu podia ter visão da porta de frente, da lateral e de parte dos fundos do
terreno. Sabia que não iria conseguir mesmo passar despercebido pela
vizinhança, mas pretendia pelo menos poder passar despercebido por alguém que
talvez fosse até a casa.
Oculto pela escuridão projetada
por uma grande árvore que bloqueava boa parte da luz dos postes de iluminação, eu
fiquei por um bom tempo prestando atenção na pouca movimentação da rua, nada de
anormal, pessoas saindo nas varandas para fumar e outras chegando do trabalho. Por
volta das 22h a monotonia da espreita, que começava a parecer sem propósito,
estava quase me vencendo e eu começava a pensar que havia me precipitado,
deveria ter convencido os vizinhos que era melhor iniciar uma pesquisa sobre a
casa e o terreno com alguns corretores de imóveis, mas enfim...
A noite fria começava a
tornar-se madrugada gelada, eu estava com muito sono e pouco havia me
movimentado pelos arredores do terreno lamacento, nada havia acontecido e todas
as casas estavam escuras e silenciosas, resolvi que iria embora. Passei
vagarosamente observando as janelas, quase distraído pelo sono e pelo frio,
quando vi rapidamente entre as frestas das madeiras da janela uma luz como a de
uma vela, seria imperceptível se eu estivesse um pouco mais rápido. Caminhei com
cautela procurando não fazer barulho, cruzei mais uma vez o gramado alto até
chegar à janela, mas já não havia mais luz alguma, lá dentro estava novamente
escuro demais para que pudesse distinguir qualquer coisa.
Dei mais uma volta ao
redor da casa e me dirigi para a porta, olhei em direção às casas vizinhas que
estavam totalmente fechadas e escuras, encostei levemente na porta e puxei com
cuidado abrindo uma boa fresta fazendo um monótono rangido, peguei a arma e a
lanterna, apontei o facho de luz para dentro tentando perceber algum movimento,
mas tudo estava quieto, puxei um pouco mais a porta e entrei, o cheiro do mofo
era sufocante, toda a casa era úmida e o chão escorregadio de lodo.
Um som de gotejar era constante
dentro da casa, joguei a luz da lanterna por diversos cantos do local e percebi
que não havia ali muitos lugares para alguém se esconder, a casa por dentro havia
sofrido grosseiras modificações e parecia mais uma espécie de galpão. Era claro
que não havia mais ninguém ali além de mim, o que me deixava ainda mais
intrigado com a luz que havia percebido poucos minutos atrás. Comecei a caminhar lentamente sobre o
chão escorregadio e conforme ia avançando para o centro da construção o som do
gotejar ficava mais nítido, lancei a luz da lanterna para baixo e com um susto
percebi que eu estava a um passo de despencar em um enorme buraco escavado bem ali
no centro do lugar. Lentamente, com medo de escorregar, me abaixei junto à
borda do poço que parecia muito profundo. Apontei a lanterna para o dentro do
buraco, um cheiro terrível subia até mim em uma mistura de umidade, água parada
e matéria em decomposição me obrigando a cobrir o nariz colocando a pistola
novamente presa na cintura, eu não podia enxergar o fundo do poço, mas percebi que
na extremidade oposta a que eu estava havia uma longa escada de madeira, que
pela aparência era tão velha quanto tudo por ali.
Naquele momento pensei
que havia desvendado o mistério, tudo estava claro, com certeza aquele buraco fazia
parte de algum plano de ladrões, embora ainda não pudesse explicar como alguém
poderia remover tanta terra sem chamar a atenção dos vizinhos para a operação
de escavação. Lembrei-me dos montes de terra nos fundos do terreno mesmo que aqueles
claramente não fizessem jus à profundidade daquele verdadeiro abismo.
Fiz o contorno ladeando
o buraco até próximo da escada enquanto decidia quem eu deveria notificar
primeiro e naquele momento ouvi um ranger de madeira que vinha das profundezas
escuras daquele maldito buraco, alguém estava subindo pela apodrecida escada. Apaguei
a lanterna me afastando para um canto enquanto o ruído aumentava aproximando-se
da superfície, não podia acreditar que alguém estivesse subindo por aquela
escada tão rapidamente como parecia estar.
No canto onde eu tentava
me esconder na escuridão havia uma pilha considerável de tecidos que tateando
percebi serem grandes casacos, com certeza a atividade ali não estava abandonada.
No mesmo momento em que encontrei os casacos uma mão anormalmente grande e
inchada tateou a borda do poço.
O
que saiu de lá não era humano, apesar da escuridão eu podia ver a pele inchada,
rugosa e incrivelmente pálida da criatura, tapei a boca com as mãos para conter
um grito de espanto quando a coisa pôs-se totalmente para fora do buraco. Minha
mão trêmula procurou pela minha arma que acabou caindo fazendo estardalhaço
naquele ambiente silencioso, o monstro rapidamente olhou para a pilha de
casacos dentre os quais eu tentava me esconder, enfiei-me de vez por debaixo da
pilha malcheirosa de capotes velhos e embolorados. A criatura avançava enquanto
em desespero eu tateava o chão em busca da pistola, mas de súbito a criatura do
subterrâneo parou e virou-se novamente para a cratera, o ranger da escada
recomeçara.
A criatura debruçou-se
na borda e ajudou outro semelhante a terminar de su1bir, este também estava
completamente nu, mas as proporções de seu corpo eram visivelmente menores. A
segunda criatura estava completamente atordoada, cambaleava para os lados e
emitia grunhidos guturais que enchiam minha alma de pavor, o maior então emitiu
vociferou de uma maneira medonha e naquele momento eu quase perdi a consciência,
um medo terrível me invadiu e eu tremia enquanto o suor gelado brotava e
escorria pela minha testa.
Pensamentos desconexos
e aterradores passavam como ondas gigantes por minha cabeça, não queria
observar aquelas criaturas, mas cada vez mais me sentia compelido a olhá-las. O
monstro maior então começou a falar em uma língua grotesca com a outra, eu não
podia entender nada, mas a cada vociferação eu sentia meus ossos tremerem
dentro da carne enquanto as lágrimas rolavam pelo meu rosto. O monstro maior deu
alguns passos até a pilha de casacos onde, como um rato eu me escondia, e
apanhando um deles imediatamente o jogou sobre os ombros do outro que parecia
estar recuperando o equilíbrio. Vociferou mais algumas coisas indecifráveis e
começou a empurrar violentamente o menor em direção à porta o enxotando dali.
Eu
segurava a boca com as mãos para não gritar, aquelas coisas saíam das
profundezas da terra e caminhavam entre nós na superfície! O monstro voltou
para o buraco e desapareceu, mas isto não diminuiu meu sentimento de pavor. Precisei
de ainda de alguns minutos para reunir minhas forças e me levantar, saí da casa
me arrastando, naquele momento eu era mais um verme do que um homem e quando
cruzei a porta senti como se parte de um peso enorme estivesse sido retirado de
cima de mim. E antes que eu abandonasse de vez o lugar, dei uma última olhada
para trás, não vi nenhum dos monstros, mas me pareceu que próximo à entrada da
casa havia uma pessoa escondida nas sombras. Gritei algumas palavras ininteligíveis
e saí sem direção, pensava em chegar até minha casa e trancar-me até o fim dos
meus dias, minha visão começou a ficar turva, tentei correr e não devo ter dado
mais que alguns passos antes de cair desacordado.
Na
manhã seguinte fui encontrado pelos vizinhos, eu havia desmaiado no terreno
lamacento durante a pífia tentativa de fuga. Alvoroçados, os moradores dali
praticamente exigiam saber o que havia acontecido comigo ao mesmo tempo em que praguejavam
contra viciados e ladrões que, na ideia deles, com certeza haviam me
surpreendido. Finalmente me levaram para minha casa, onde eu ainda atordoado,
contei-lhes uma história sobre uma pequena gangue de viciados ladrões que
estavam tentando fazer dali um esconderijo, aproveite-me da história deles e
eles deram-se por satisfeitos.
Semanas
depois houve um incidente no local da velha casa, o terreno cedeu e a
construção ruiu para dentro de uma cratera profunda levando consigo grande
parte do gramado lamacento, algumas árvores e toda a parte dos fundos que
estava tomada por montes de terra e detritos. Os bombeiros afirmaram que o
incidente foi devido a um colapso nos antigos sistemas de água e esgoto que certamente
havia ali por debaixo e já há muito tempo desativados e esquecidos. Os vizinhos
acreditaram assim como a polícia acreditou na história sobre a gangue de
viciados que foi afugentada por um solitário ex-policial... Já eu, amargamente
acreditava apenas no que meus olhos viram e no terror que minha mente vivenciou
diante daqueles monstros.
Durante
as noites, principalmente nas mais úmidas, sou tomado por um temor quase
insano, não consigo mais trabalhar e saio de casa somente para o estritamente
necessário, nunca mais passei por aquela rua e aos poucos os vizinhos foram me
esquecendo. Passo a maior parte do tempo conjecturando sozinho sobre a natureza
daquelas coisas, sobre quantas delas podem existir e, principalmente, sobre quais
seriam seus planos. Tenho certeza que aquele não era o único poço infernal
existente!
Nunca mais serei o
mesmo, nunca mais verei as coisas como antes. Passei a sentir que a todo o
momento aquela figura que estava escondida nas sombras me observando enquanto
eu tentava fugir daquele inferno, ainda permanecia por perto me vigiando e
tomando conta até mesmo dos meus pensamentos. Com terror absoluto penso e tenho
pesadelos com naquelas coisas, com aqueles monstros saindo de dentro terra e que
agora podem estar em qualquer lugar...
Autor: Vagner Tadeu Firmino
A Triste Figura
Publicado em: Moderno Bestiário Urbano
Texto e imagem: Todos os direitos reservados
Contato: atristefigura@gmail.com
Obrigado pela sua leitura, espero que tenha gostado.
Em tudo, a tensao e o medo que o autor consegue refletir do personagem para nos leitores, é de tal profundidade que chego a respirar como se estivesse em um lugar sombrio e totalmente gelado. Adans Medeiros
ResponderExcluirMeu amigo, muito obrigado pela leitura e pelo comentário! É muito animador saber que você gostou e se envolveu com a história, muito obrigado.
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