NA
COMPANHIA DE MARGOT
Histórias
sobre fantasmas, aparições e coisas do tipo me assustam muito, não porque eu
seja uma medrosa apavorada, mas sim porque depois do que me aconteceu tenho
absoluta certeza que fantasmas existem sim e que nós, que ainda estamos vivos,
nunca estamos sozinhos.
Quando eu tinha por volta de
sete anos, minha família se mudou para uma residência construída em 1.920, um
casarão antigo e portentoso com uma arquitetura impecável e rebuscada, meu pai
vive lá até os dias de hoje enquanto eu moro com minha mãe na casa de meu avô e
mesmo sentindo muita saudade de meu pai, eu dificilmente vou visitá-lo naquele
lugar. As lembranças são muito pesadas e não somente pela estranha experiência
que vivi, mas também pelo fato de ser uma época muito difícil para mim, pois
são lembranças de quando meus pais ainda viviam juntos e até hoje não aprendi a
lidar com a separação.
Enfim, durante todo o tempo em que vivi naquela casa, logo que me deitava e começava a adormecer, sentia uma espécie de pressão na cama, bem ao meu lado, como se algo pesado tivesse sido colocado no colchão junto comigo. O ar parecia ficar pegajoso e eu sentia como se mais alguém estivesse comigo além de Jeanne, minha gata de estimação que dormia enrolando-se aos meus pés. Eu sempre adormecia com esta impressão estranha, eu sentia medo, mas não pensava muito sobre aquilo, nem mesmo quando invariavelmente a certa hora da noite Jeanne saia da cama aos pulos e toda arrepiada, fugia pelo vão da porta entreaberta. Eu somente a voltava a vê-la no outro dia pela manhã.
Apesar do sentimento estranho e do comportamento de
Jeanne, eu nunca havia levado o caso até meus pais ou comentado com qualquer
outra pessoa. Hoje posso perceber que eu queria acreditar que aquilo não
passava de uma cisma de minha, de imaginação, e que a gata era meio
neurótica... Depois de algum tempo sentindo noite após noite aquilo que eu
somente conseguia definir como uma presença e observando minha gata fugir toda
madrugada, sem saber o motivo eu passei a me referir à presença como Margot,
somente alguns anos mais tarde fui entender o motivo de ter ‘escolhido’ este
nome para definir toda aquela atmosfera, para nomear o que me acompanhava todas
as noites.
Por coincidência ou não, logo que nomeei a presença
senti uma alteração na situação, comecei a perceber que a intensidade da
manifestação de algo no quarto comigo passou a ser mais marcante, eu passei a
poder sentir um leve deslocamento de ar passando por mim diversas vezes e sempre
que estava prestes a adormecer sentia que algo realmente ocupava um espaço ao
meu lado na cama. Eu não tinha coragem de me virar para olhar e Jeanne nunca
mais dormiu no quarto junto comigo, ou melhor, ela nunca mais entrou no quarto e
se eu tentasse levá-la ela fugia aos saltos e com os pêlos todos hirtos.
A coisa caminhava assim: Eu cada vez com mais medo,
mas sem falar nada para ninguém e dormindo cada vez menos, muitas vezes eu
adormecia no sofá e logo meu pai me mandava para o quarto, eu subia as escadas
com muito medo e quando entrava já podia sentir a presença estranha daquilo que
eu apelidara de Margot. Foi uma fase medonha que aos poucos foi fazendo com que
meus pais percebessem o quanto eu evitava o quarto, não demorando a resolver conversar
comigo sobre o que havia de errado.
Fiquei um tanto quanto constrangida, claro, em
falar sobre aquilo, e como eu imaginava não tivemos uma conversa produtiva, não
posso culpá-los por isso, os adultos têm forte tendência a achar que tudo o que
uma criança conta é fruto de uma imaginação facilmente impressionável por
desenhos animados e histórias em quadrinhos... Outra coisa que não colaborou para
que a conversa pudesse fluir melhor foi que era o início da separação de meus
pais, era visível a todos que as coisas não iam bem já há muito tempo e pouco
faltava para se separarem. No fim minha mãe limitou-se a restringir meus
horários e programas na TV, meu pai deu de ombros.
Eu não podia mais dormir na sala, então passei a ir
para meu quarto cada vez mais tarde e quase sempre eu desviava o caminho
aproveitando da escuridão do corredor para ficar no quarto de hóspedes, meu pai
nunca percebeu, já minha mãe estava observando meu comportamento e certa eu vez
ouvi uma amiga dela dizendo que meu comportamento era apenas reflexo da situação
pela qual nossa família estava passando...
Não demorou e eu encontrei a porta do quarto de hóspedes trancada, foi a
maneira que eles encontraram de me fazer encarar meus medos e aprender a reagir
melhor diante de “certas situações”, ao menos foi o que me disseram.
As férias chegaram e eu estava um farrapo, quase
não dormia e a cada noite a presença se tornava mais forte, e quanto mais forte
aquilo ficava mais oprimida eu me sentia, era como se uma atmosfera impregnada
de tristeza e melancolia estivesse adormecida naquele quarto e despertava
sempre que eu estava presente no quarto. O restante da casa parecia imune, de
alguma forma eu sentia que aquilo já estava lá há muito tempo e que eu era
apenas um gatilho para despertar a companhia triste, assustadora e opressora
daquilo que eu não sabia explicar o que era, mas havia me acostumado a chamar
de Margot.
Logo na primeira semana de férias, recebemos a
visita inesperada de um senhor e uma moça, pai e filha, eles contaram aos meus
pais que já haviam residido naquela casa alguns anos antes e estavam visitando
alguns amigos na vizinhança, e ao passarem pela casa tiveram a idéia de pedir
para fazer uma rápida visita a fim de relembrar o passado, rever a casa onde a
família deles começou. Minha mãe permitiu na hora achando linda a imagem de pai
e filha juntos procurando relembrar o passado e coisas assim. Meu pai deu pouca
importância ao pedido. Os dois visitantes caminharam timidamente sozinhos pela
casa enquanto minha mãe foi para a cozinha preparar um refresco.
Eu fiquei entre a sala e a cozinha, estava de certa
forma aflita, minha mãe percebeu minha inquietação e me chamou para junto dela.
Ali entrelaçada nos braços dela me senti segura, mas algo ainda me incomodava
muito, pela primeira vez eu podia sentir a movimentação de Margot dentro do
quarto mesmo eu estando fora dele
As visitas terminaram o tour e de volta à sala
minha mãe levou os refrescos e logo estavam todos conversando, menos meu pai,
até que minha mãe sem receio algum e perguntou:
— O senhor tem conhecimento sobre alguma coisa,
como posso dizer... Estranha, talvez, com esta casa?
Eu não acreditava que ela seria capaz de fazer
aquilo, fiz menção de me levantar e imediatamente a mão dela pousou sobre minha
perna fazendo com que eu me sentasse de novo.
O
homem deu uma gargalhada espalhafatosa e com um deboche pouco disfarçado fez
outra pergunta, mas olhando para a filha constrangida:
— Alguma coisa estranha como um fantasma?
Meu pai mexeu-se na poltrona e a menina abaixou os
olhos e murmurou que aquilo não tinha graça, fazendo o homem fechar o sorriso
na mesma hora. Para meu completo terror, ela contou que durante os anos em que morava
naquele lugar a menina tinha verdadeira aversão por um dos quartos, onde ela
dizia sentir e uma atmosfera estranha, uma presença a observá-la, mas o mais
estranho, disse ela, era que sempre que tentava dormir naquele quarto — o meu
quarto agora — sentia que alguém ocupava a beirada da cama e ficava observando,
sem entender o porquê ela havia apelidado aquela presença de Margot.
Eu estremeci, a garota ficou pareceu muito abalada
após o relato e todos na sala pareciam constrangidos. O homem então pigarreou e
levantando-se para ir embora agradeceu a hospitalidade e o refresco, precisavam
ir embora e aquilo me fez sentir aliviada. Minha mãe segurava forte minha mão enquanto
acompanhávamos nossos visitantes até a porta, meu pai despediu-se e continuo
sentado voltando a folhear para seu jornal, fiquei na cozinha com minha mãe o
resto da tarde apenas pensando em tudo aquilo.
Depois da visita daquelas pessoas, meus pais nunca
mais me obrigaram a subir para o quarto e eu sempre era autorizada a dormir na
sala, meu pai raramente estava dormindo em casa, o casamento deles dava o
último suspiro e as discussões eram frequentes. E em meio a uma destas brigas
uma noite eu subi as escadas correndo e chorando, desesperada procurando por um
abrigo em algum lugar onde os gritos medonhos de meus pais brigando não
pudessem ser ouvidos acabei entrando no quarto assombrado.
Naquele momento de desespero não pensei em
fantasmas ou em qualquer outra coisa, apenas me joguei na cama sem dar
importância à atmosfera pesada que lentamente esparramava-se à minha volta. Não
demorou e senti um leve movimento pressionando o colchão, fiquei imóvel e as
lágrimas secaram de meus olhos. Uma sensação fria e pegajosa percorreu meu
corpo quando senti um uma mão fria tocar minha cabeça e desajeitadamente alisar
meus cabelos.
Saí da cama com um salto atrapalhado, enquanto um
vulto enegrecido se esgueirava para as sombras projetadas pelos móveis velhos
do quarto. Eu estava farta de tudo aquilo, estava farta daquela casa, farta das
brigas, e farta de Margot.
— Não me importo com você! Não me importa que fique
aqui, mas não quero ver você nunca mais! — Gritei com a figura invisível.
Corri para a porta e desci as escadas
gritando, meus pais que ainda discutiam se assustaram e tentaram me segurar,
mas somente me pegaram quando eu já havia ganhado a rua. No outro dia, minha
mãe e eu fomos para a casa do vovô.
Muito tempo se passou até que tivesse coragem de
visitar meu pai naquela casa, na verdade mais de oito anos, meu pai já estava
casado novamente e tinha um filho de quatro anos. Em uma das visitas a esposa
dele me contou toda divertida que o garotinho deles gostava muito de ficar no
quarto que um dia foi meu, ele dizia que Margot gostava de ficar com ele,
“Provavelmente um amigo imaginário”, ela disse sem preocupação alguma...
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