Primeiro uma pequena introdução:
Publicado pela primeira vez no
fanzine “Manus Nocturna – Pequenas Realidades de Horror”, este conto faz parte
de uma série de outros contos e minicontos onde diversas pessoas relatam um
período que ficou conhecido como A Era da Ciência de Abel, as narrações sobre
este período assombroso foram divididas em três partes: “O Retorno de Abel”, “O
Levante do Gigante” e “A Ciência de Abel”.
O Injustiçado, como Abel se
denominava, ergueu-se de seu poço de chamas e impôs à humanidade sua presença e
seu império, ele escravizou os povos através de sua arte e seus conhecimentos –
A Ciência de Abel – buscando saciar sua sede de vingança contra sua família e
principalmente contra Deus. Abel rasgou o delicado véu que separava o mundo dos
homens do mundo dos antigos deuses e divindades, Abel uniu as ciências ocultas
com a tecnologia, mostrou aos povos a verdade sobre as religiões, sobre os
santos e sobre os demônios trazendo para o nosso mundo os antigos povos que
muito antes de nós dominaram a Terra.
I - TECNO-OCULTISTAS
Já estávamos todos amarrados, todos
presos por aquele maldito cordão vermelho que eles chamam de Ordo, caminhávamos
em fila pela rua desolada indo em direção ao prédio negro no centro da cidade,
todos nós já conhecíamos nosso destino, seríamos entregues aos vermes, mas
mesmo assim não oferecíamos resistência, caminhávamos mudos, alguns apenas
derrubando lágrimas.
À nossa frente caminhavam dois
soldados, vez por outra um deles vinha em nossa direção certificando nossas
amarras, sua face era hedionda com todos aqueles pequenos tentáculos se
contorcendo, a simples visão daquilo rasgava-nos a alma, nossa alma já tão
dilacerada por todos os seguidos anos de tortura e medo pelo qual passamos
desde que Abel levantou-se professando sobre sua vingança. Eu já estava
resignado, melhor assim, morrer e acabar logo com esta vida destroçada, todos os
meus amigos foram capturados e a maioria assassinados pelos monstros que
surgiam de todas as partes, fui separado de minha família logo no início,
quando os soldados de Abel começaram a matar os mais velhos e levar as crianças
para um local até hoje desconhecido.
Muitas pessoas cometeram suicídio
naquela época, nossa realidade foi completamente alterada, não do dia para a
noite, mas tão gradualmente que nem percebemos o que estava acontecendo. Alguns
diziam que tudo começou quando os homens começaram a criar vida através da
ciência e da tecnologia, mas eu penso que não, acho que por muito tempo demos
pouca importância às questões metafísicas, brincamos muito de ser Deus, mas não
somente isto, pois também brincamos de ser o diabo. Confundimo-nos com a
presença poderosa de Abel, sua sapiência e convicção ao mesmo tempo professando
uma vingança e nos ensinado os “truques” daqueles que ele chama de Primeiros,
aqueles que segundo ele pisaram aqui enquanto os outros como ele somente
observavam de longe.
Abel nos ensinou como unir a ciência
ao oculto, nos ensinou que a conceito de ciência oculta não era algo fantasioso
como pensávamos, era algo muito acima de nosso entendimento. Durante séculos
enxergamos tudo veladamente e Abel surgiu rasgando o véu da ignorância que nos
protegia.
Eu nunca estive neste lugar, mesmo quando tudo era
normal, nunca passei por esta cidade, imagino como estas ruas eram abarrotadas
de gente de todos os tipos, dos mais ricos aos mais pobres, os felizes e os infelizes. Hoje
somente há desolação por todos os lados, todos os lugares estão vazios, mas a
humanidade não foi dizimada, não temos como saber quantos de nós ainda resta,
mas provavelmente não somos poucos, afinal somos uma praga e proliferamos até
mesmo nas piores condições... Dizem que alguns grupos ainda esgueiram-se pelos
ambientes urbanos, mas a maioria está em locais afastados, nos poucos onde um
observatório ainda não foi erguido. As únicas pessoas que vi nos últimos anos
eram como eu, escravos condenados à morte.
Um homem nu caminhava na minha
frente fazendo uma oração, não pude me lembrar da última vez em que eu havia
feito uma oração, como a grande maioria eu também havia perdido a fé.
Percebemos que durante séculos acreditamos em farsas, segundo Abel acreditamos
no que queríamos acreditar, não contestamos e deixamos nossa mente ficar
viciada nos antigos contos mutilados e permeados de mentiras. A culpa de tudo,
segundo Abel, era nossa.
De súbito os guardas pararam e a fila se embolou, o soldado
que estava incumbido da Ordo ficou parado em alerta e grunhiu algo com o outro
que saiu em disparada olhando a todos os prisioneiros, quando estava se aproximando
de mim percebi que em um canto escuro, na entrada de um prédio em ruínas, havia
um homem com um capuz, meu coração disparou quando ele arregaçou as mangas e vi
um dispositivo brilhante preso em seu braço. No mesmo momento o guarda próximo a
mim também percebeu a figura escura na calçada e urrou a seu parceiro,
imediatamente este desconectou a Ordo de seu antebraço e o cabo chacoalhando
como uma cobra caiu no asfalto esburacado e prendeu-se a ele.
Com a desordem a Ordo começou a emitir
ondas de choque em nós, estávamos todos acostumados a estas descargas. O guarda
então gritou algumas palavras e começou a correr em direção à figura encapuzada, o
homem que estava no começo da fila colocou-se na frente do monstro cerrando os
punhos, a criatura não lhe deu atenção e com um único golpe destruiu a cabeça
do opositor. Com o alvoroço fui puxado e caí no chão, levei uma descarga elétrica
da Ordo e fiquei deitado.
Com a aproximação dos demônios a
figura saltou de seu esconderijo e recitando palavras como em um mantra apertou
alguns símbolos luminosos no equipamento preso em seu braço e seu corpo
inteiro acendeu em um fulgor amarelo, os homens presos e embolados começaram a
gritar tentando arrancar o grilhão que cada vez mais se sacudia e nos
impregnava de eletricidade. O primeiro monstro a se aproximar do
tecno-ocultista possuía um dos braços muitas vezes maior e mais musculoso que o
outro e desferiu um estrondoso golpe, faíscas voaram por todos os lados fazendo
com que cobríssemos os olhos, tudo ficou em silêncio, ouvíamos apenas um
pequeno zumbido de estática.
Abri os olhos com medo de ver nossa
última chance de não morrer nas mãos dos malditos destruída, mas o
tecno-ocultista estava de pé, o brilho que havia acendido nele, certamente um
escudo, estava agora apenas faiscando avariado pelo golpe terrível, mas o
inimigo estava caído no solo, o braço arrancado do corpo. Podíamos espalhada
pelo chão ver a massa de carne, fios e circuitos que davam vida a aquela
aberração.
O segundo inimigo parou abruptamente
e fez sinais com as mãos e uma sombra com as mesmas proporções dele foi
projetada à frente, o defensor puxou um cabo fino de seu equipamento e
colocou-o na palma da mão direita, assoprou o punho fechado e gritou uma
palavra, a sombra já estava prestes a agarrá-lo quando ele abriu a mão com a
palma voltada à frente, havia um grande olho faiscante nela e a sombra se
desfez. Soltando o cabo que segurava enfiou a mão no bolso da capa tirando uma
pequena esfera, jogou-a em nossa direção e quando ela caiu abriu-se parecendo uma
pequena flor, o demônio deixou então de atacar seu inimigo e avançou para cima
de nós, o pequeno aparelho atirado pelo combatente emitiu um pulso e de uma vez
só todos nós fomos libertados, a Ordo que é metade orgânica e metade máquina,
caiu desativada no chão. Livres após tanto tempo, começamos a correr para
diversas direções e o soldado demoníaco no meio da confusão desferia golpes
mortais, olhei em volta e o homem que nos libertou já havia desaparecido.
Corri desesperadamente pelo asfalto esburacado sem
saber para onde ir, queria apenas salvar-me de morrer nas mãos dos demônios, não
sei quantos conseguiram escapar com vida aquele dia, todos estavam debilitados
e assustados, enquanto eu fugia para o meio dos escombros da cidade ouvia os
gritos daqueles que não conseguiram escapar, culpo-me por não ter tentado
ajudar ninguém, de não ter tido a coragem do tecno-ocultista ou daquele homem
que de punhos cerrados colocou-se na frente do soldado para lutar. Algumas
vezes, durante as noites em que durmo dentro de buracos ou debaixo dos
destroços a que o mundo ficou reduzido, sonho com aquele homem rezando em minha
frente na fila e quando acordo tento repetir as orações, mas não consigo.
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