segunda-feira, 15 de julho de 2013

A ERA DA CIÊNCIA DE ABEL


Primeiro uma pequena introdução:
            Publicado pela primeira vez no fanzine “Manus Nocturna – Pequenas Realidades de Horror”, este conto faz parte de uma série de outros contos e minicontos onde diversas pessoas relatam um período que ficou conhecido como A Era da Ciência de Abel, as narrações sobre este período assombroso foram divididas em três partes: “O Retorno de Abel”, “O Levante do Gigante” e “A Ciência de Abel”.
            O Injustiçado, como Abel se denominava, ergueu-se de seu poço de chamas e impôs à humanidade sua presença e seu império, ele escravizou os povos através de sua arte e seus conhecimentos – A Ciência de Abel – buscando saciar sua sede de vingança contra sua família e principalmente contra Deus. Abel rasgou o delicado véu que separava o mundo dos homens do mundo dos antigos deuses e divindades, Abel uniu as ciências ocultas com a tecnologia, mostrou aos povos a verdade sobre as religiões, sobre os santos e sobre os demônios trazendo para o nosso mundo os antigos povos que muito antes de nós dominaram a Terra.

I - TECNO-OCULTISTAS

            Já estávamos todos amarrados, todos presos por aquele maldito cordão vermelho que eles chamam de Ordo, caminhávamos em fila pela rua desolada indo em direção ao prédio negro no centro da cidade, todos nós já conhecíamos nosso destino, seríamos entregues aos vermes, mas mesmo assim não oferecíamos resistência, caminhávamos mudos, alguns apenas derrubando lágrimas.
            À nossa frente caminhavam dois soldados, vez por outra um deles vinha em nossa direção certificando nossas amarras, sua face era hedionda com todos aqueles pequenos tentáculos se contorcendo, a simples visão daquilo rasgava-nos a alma, nossa alma já tão dilacerada por todos os seguidos anos de tortura e medo pelo qual passamos desde que Abel levantou-se professando sobre sua vingança. Eu já estava resignado, melhor assim, morrer e acabar logo com esta vida destroçada, todos os meus amigos foram capturados e a maioria assassinados pelos monstros que surgiam de todas as partes, fui separado de minha família logo no início, quando os soldados de Abel começaram a matar os mais velhos e levar as crianças para um local até hoje desconhecido.
            Muitas pessoas cometeram suicídio naquela época, nossa realidade foi completamente alterada, não do dia para a noite, mas tão gradualmente que nem percebemos o que estava acontecendo. Alguns diziam que tudo começou quando os homens começaram a criar vida através da ciência e da tecnologia, mas eu penso que não, acho que por muito tempo demos pouca importância às questões metafísicas, brincamos muito de ser Deus, mas não somente isto, pois também brincamos de ser o diabo. Confundimo-nos com a presença poderosa de Abel, sua sapiência e convicção ao mesmo tempo professando uma vingança e nos ensinado os “truques” daqueles que ele chama de Primeiros, aqueles que segundo ele pisaram aqui enquanto os outros como ele somente observavam de longe.
            Abel nos ensinou como unir a ciência ao oculto, nos ensinou que a conceito de ciência oculta não era algo fantasioso como pensávamos, era algo muito acima de nosso entendimento. Durante séculos enxergamos tudo veladamente e Abel surgiu rasgando o véu da ignorância que nos protegia.
Eu nunca estive neste lugar, mesmo quando tudo era normal, nunca passei por esta cidade, imagino como estas ruas eram abarrotadas de gente de todos os tipos, dos mais ricos aos mais pobres, os felizes e os infelizes. Hoje somente há desolação por todos os lados, todos os lugares estão vazios, mas a humanidade não foi dizimada, não temos como saber quantos de nós ainda resta, mas provavelmente não somos poucos, afinal somos uma praga e proliferamos até mesmo nas piores condições... Dizem que alguns grupos ainda esgueiram-se pelos ambientes urbanos, mas a maioria está em locais afastados, nos poucos onde um observatório ainda não foi erguido. As únicas pessoas que vi nos últimos anos eram como eu, escravos condenados à morte.
            Um homem nu caminhava na minha frente fazendo uma oração, não pude me lembrar da última vez em que eu havia feito uma oração, como a grande maioria eu também havia perdido a fé. Percebemos que durante séculos acreditamos em farsas, segundo Abel acreditamos no que queríamos acreditar, não contestamos e deixamos nossa mente ficar viciada nos antigos contos mutilados e permeados de mentiras. A culpa de tudo, segundo Abel, era nossa.
De súbito os guardas pararam e a fila se embolou, o soldado que estava incumbido da Ordo ficou parado em alerta e grunhiu algo com o outro que saiu em disparada olhando a todos os prisioneiros, quando estava se aproximando de mim percebi que em um canto escuro, na entrada de um prédio em ruínas, havia um homem com um capuz, meu coração disparou quando ele arregaçou as mangas e vi um dispositivo brilhante preso em seu braço. No mesmo momento o guarda próximo a mim também percebeu a figura escura na calçada e urrou a seu parceiro, imediatamente este desconectou a Ordo de seu antebraço e o cabo chacoalhando como uma cobra caiu no asfalto esburacado e prendeu-se a ele.
            Com a desordem a Ordo começou a emitir ondas de choque em nós, estávamos todos acostumados a estas descargas. O guarda então gritou algumas palavras e começou a correr em direção à figura encapuzada, o homem que estava no começo da fila colocou-se na frente do monstro cerrando os punhos, a criatura não lhe deu atenção e com um único golpe destruiu a cabeça do opositor. Com o alvoroço fui puxado e caí no chão, levei uma descarga elétrica da Ordo e fiquei deitado.
            Com a aproximação dos demônios a figura saltou de seu esconderijo e recitando palavras como em um mantra apertou alguns símbolos luminosos no equipamento preso em seu braço e seu corpo inteiro acendeu em um fulgor amarelo, os homens presos e embolados começaram a gritar tentando arrancar o grilhão que cada vez mais se sacudia e nos impregnava de eletricidade. O primeiro monstro a se aproximar do tecno-ocultista possuía um dos braços muitas vezes maior e mais musculoso que o outro e desferiu um estrondoso golpe, faíscas voaram por todos os lados fazendo com que cobríssemos os olhos, tudo ficou em silêncio, ouvíamos apenas um pequeno zumbido de estática.
            Abri os olhos com medo de ver nossa última chance de não morrer nas mãos dos malditos destruída, mas o tecno-ocultista estava de pé, o brilho que havia acendido nele, certamente um escudo, estava agora apenas faiscando avariado pelo golpe terrível, mas o inimigo estava caído no solo, o braço arrancado do corpo. Podíamos espalhada pelo chão ver a massa de carne, fios e circuitos que davam vida a aquela aberração.
            O segundo inimigo parou abruptamente e fez sinais com as mãos e uma sombra com as mesmas proporções dele foi projetada à frente, o defensor puxou um cabo fino de seu equipamento e colocou-o na palma da mão direita, assoprou o punho fechado e gritou uma palavra, a sombra já estava prestes a agarrá-lo quando ele abriu a mão com a palma voltada à frente, havia um grande olho faiscante nela e a sombra se desfez. Soltando o cabo que segurava enfiou a mão no bolso da capa tirando uma pequena esfera, jogou-a em nossa direção e quando ela caiu abriu-se parecendo uma pequena flor, o demônio deixou então de atacar seu inimigo e avançou para cima de nós, o pequeno aparelho atirado pelo combatente emitiu um pulso e de uma vez só todos nós fomos libertados, a Ordo que é metade orgânica e metade máquina, caiu desativada no chão. Livres após tanto tempo, começamos a correr para diversas direções e o soldado demoníaco no meio da confusão desferia golpes mortais, olhei em volta e o homem que nos libertou já havia desaparecido.
Corri desesperadamente pelo asfalto esburacado sem saber para onde ir, queria apenas salvar-me de morrer nas mãos dos demônios, não sei quantos conseguiram escapar com vida aquele dia, todos estavam debilitados e assustados, enquanto eu fugia para o meio dos escombros da cidade ouvia os gritos daqueles que não conseguiram escapar, culpo-me por não ter tentado ajudar ninguém, de não ter tido a coragem do tecno-ocultista ou daquele homem que de punhos cerrados colocou-se na frente do soldado para lutar. Algumas vezes, durante as noites em que durmo dentro de buracos ou debaixo dos destroços a que o mundo ficou reduzido, sonho com aquele homem rezando em minha frente na fila e quando acordo tento repetir as orações, mas não consigo.

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